Harry Potter e suas traduções

O NASCIMENTO DE UMA SAGA

A saga Harry Potter, de J. K. Rowling, completou 22 anos do lançamento de seu primeiro volume, Harry Potter a e Pedra Filosofal, publicado em 1997. Durante essas duas décadas, a saga acumulou 7 livros, 10 filmes e mais de 400 milhões de livros vendidos, que foram traduzidos em mais de 74 idiomas! No entanto, as traduções revelaram-se uma enorme dor de cabeça para os tradutores, devido à quantidade de neologismos, desde nomes de personagens a criaturas e encantamentos.

O principal problema com as traduções de Harry Potter, como acontece com a maioria das sagas, nasce no momento da tradução de seu primeiro livro, pois então ninguém poderia imaginar a fama mundial que o garoto Harry ganharia, tampouco que o livro se transformaria numa das sagas mais longas, conhecidas, traduzidas, filmadas e lucrativas da história! No Brasil, o primeiro livro foi classificado como literatura infantojuvenil do gênero fantasy e, com o intuito de facilitar a leitura por parte das crianças brasileiras com idade até os 13 anos, com pouco ou nenhum conhecimento da língua inglesa, fundamental para compreender as inúmeras referências diretas e indiretas presentes no texto, decidiu-se traduzir ou adaptar a maior parte dos nomes para tentar aproximar ao máximo o ambiente britânico ao brasileiro, criando uma espécie de “ponte cultural”. Por isso, Bill virou Gui, Albus virou Alvo e Severus virou Severo. No entanto, muitas escolhas tradutórias foram feitas sem levar em consideração desdobramentos futuros, e acabaram gerando muita controvérsia e críticas. Com a explosão de popularidade da obra e o passar dos anos, seus leitores fiéis também cresceram (e aprenderam inglês), o que aumentou também o nível de exigência com as traduções, já que hoje seu público inclui leitores entre os 8 e os 80 anos!

PROBLEMAS DE TRADUÇÃO

Ser fiel ao original é o objetivo de todo tradutor, mas os desafios são muitos, principalmente quando se trata do gênero fantasy, pois o texto tende a ser muito criativo, geralmente ambientado em um mundo imaginário e repleto de termos novos e, em alguns, até mesmo novos idiomas, basta pensar nas sagas O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Gelo e Fogo ou As Crônicas de Nárnia. Quando a língua original é o inglês, por exemplo, o autor pode expressar sua criatividade valendo-se da estrutura do próprio idioma, pois sua origem anglo-saxônica facilita muito a criação de neologismos. E é aqui que começa a dor de cabeça dos tradutores. A tradução de nomes próprios por exemplo, causa sempre muitas controvérsias. A regra de ouro é não traduzir, mas quando esses nomes têm um significado importante na obra, o risco é que se crie uma lacuna informativa na obra traduzida. O dilema que o tradutor enfrenta é entre não traduzir os nomes próprios e deixar o leitor com uma obra recheada de nomes estrangeiros, ou traduzir tudo, ou quase, correndo o risco de não ser totalmente fiel ao original ou até mesmo de não agradar aos leitores. Geralmente, o meio-termo é a melhor solução.

No caso de Harry Potter, os nomes têm um valor ainda maior, pois J. K. Rowling atribuiu significados profundos a cada um deles. Alguns exemplos são Sirius Black, que esconde um trocadilho com as palavras black (preto) e Sirius, que é o nome de uma estrela muito brilhante, contrapondo-se ao black; Remus Lupin, que faz uma referência ao herói da mitologia romana Remo e a um lobisomem; Peeves, que vem do verbo to peeve (incomodar), que gerou o ótimo “Pirraça” em português.

A TRADUÇÃO BRASILEIRA

A tradução para o português foi feita pela Lya Wyler, minha excelente ex-professora de tradução literária no curso de Especialização em Tradução na PUC-RJ. Suas escolhas já foram muito contestadas, mas eu, como tradutora, defendo sempre meus colegas, afinal, a tradução literária é uma arte, e não é para qualquer um. É preciso ter estilo, criatividade, sensibilidade, elegância, sutileza na escolha das palavras, saber fazer pesquisa, além de lidar com os prazos apertados e as exigências da editora. Não dá pra jogar no Google Translate, assim como não basta olhar palavra por palavra no dicionário (na verdade, nenhum tradutor trabalha assim, nem mesmo no mais entediante manual de software!). O trabalho de Lya Wyler foi tão bom que há quem afirme que sua tradução tenha superado o original em estilo, pois era uma excelente tradutora literária, contando com obras de escritores como Henry Miller e Tom Wolfe em seu currículo.

Em português, optou-se por traduzir ou aportuguesar a maioria dos nomes próprios, como Dudley, que virou Duda, James, que virou Thiago e Bill, que virou Gui, bem como nosso querido Rony, que em inglês é Ron, para citar apenas alguns. Dessa forma, aproximou-se a obra ao universo dos leitores brasileiros. Já os nomes que terminam com o sufixo -us do latim foram aportuguesados com -o, como Albus-Albo, Severus-Severo, Remus-Remo.

A TRADUÇÃO ITALIANA

Mas a dor de cabeça não foi exclusividade da língua portuguesa, pois os outros idiomas enfrentaram problemas semelhantes, em maior ou menor grau, e cada um superou os desafios de forma diferente. Os franceses, por exemplo, resolveram traduzir quase todos os nomes, já os italianos começaram traduzindo tudo, mas voltaram atrás em 2011 e passaram a usar muitos termos em inglês. Decisão muito contestada, mas compreensível, considerando que 4 tradutoras participaram do projeto ao longo dos anos.

Em italiano, o problema mais gritante aconteceu com o nome de dois personagens importantes, Neville Longbottom e Albus Dumbledore. Na primeira edição, o sobrenome de Neville foi traduzido como Paciock, uma derivação de pacioccone, termo usado para descrever uma pessoa de boa índole, mas um pouco desajeitada, o que poderia ser verdadeiro nos primeiros livros, mas não nos últimos, onde ele se revelou um verdadeiro herói. O significado do termo Longbottom seria “longa vale”, e teria sido usado por JKR como uma alusão às suas origens humildes, do campo. Provavelmente, isso levou as tradutoras da edição mais recente a voltar a usar o nome como no original. O caso de Albus Dumbledore foi semelhante, a primeira tradução ficou como Albus Silente, que vai totalmente contra a ideia original, já que dumbledore é uma forma arcaica de bumblebee, uma espécie de abelha, (calabrone in italiano) usado para evocar o fato do personagem ser uma pessoa boa, sempre andando de um lugar para o outro e falando sozinho, como uma abelha que vai de flor em flor zunindo continuamente. Ideia completamente diferente de Silente. Até mesmo Severus Snape teve seu nome alterado para Severus Piton. Aqui é interessante notar que, em português, a ênfase ficou no nome Severo, retirando a terminação latina –us, mas deixando de lado Snape, cujo significado é repreender, reprovar, além de ser o nome de uma cidade na Inglaterra, segundo JKR. Em italiano, ele é conhecido como Severus Piton, provavelmente derivado de pitone (serpente), talvez uma alusão ao seu caráter amargo, venenoso.

Outro ponto interessante que apresentou um desafio aos tradutores é o registro linguístico de Hagrid. No original em inglês, ele fala em dialeto de Bristol. Na versão italiana, ele fala simplesmente errado, em tom simplório, com erros de concordância, como falaria alguém sem instrução. Em português, a tradutora optou por não incluir erros gramaticais nem caracterizar sua fala com sotaques regionais, como caipira mineiro ou nordestino, por exemplo, pois nenhuma dessas escolhas passaria o mesmo efeito do original, além de acrescentar uma característica ao personagem muito regional e não fiel, levando em consideração a discriminação linguística que infelizmente existe no Brasil. Acredito que tenha sido uma escolha muito sensata.

AS CASAS DE HOGWARTS

As famosas casas de Hogwarts também merecem destaque. Na tradução italiana, optou-se por dar maior importância às cores das casas, talvez buscando uma semelhança com as bandeiras das contradas do Palio de Siena, usando nas traduções uma combinação entre as cores e os animais que representam as casas. Enquanto no português, a ênfase ficou apenas no animal da casa, com exceção de Hufflepuff, que foi traduzida pela sonoridade. Vejamos:

GryffindorPT: Grifinória – IT: Grifondoro/ Gryffindor (2011) – Significado do termo original: “grifo de ouro”, mas seu animal é um leão e suas cores são o vermelho escarlate e o dourado.

Ravenclaw – PT: Corvinal  – IT: Corvonero – Significado do termo original: “garra de corvo”, embora o animal em seu símbolo seja uma águia e suas cores sejam o azul e o bronze, não o preto.

Slytherin PT: Sonserina  – IT: Serpeverde – Significado do termo original: “rastejante”. A tradução para o português talvez seja derivada de sonso, dissimulado, que é a tradução de sly. Em italiano, serpe é uma espécie de serpente, em linha com o animal da casa e suas cores, o verde e o prateado.

Hufflepuff PT: Lufa-Lufa  – IT: Tassorosso / Tassofrasso (2011) – Significado do termo original: provavelmente derivado da frase usada na história dos Três Porquinhos – “I will huff and puff and I will blow your house down”. Tanto huff quanto puff são sinônimos de soprar, daí a ideia de “lufa-lufa”, que significa agitação, corre-corre, mas também é derivado de “lufada” ou “lufa”, um vento forte. Já o termo italiano tomou como base o animal representante da casa, um texugo (tasso).

Minhas traduções preferidas são:

Quidditch, que em português virou “Quadribol”, uma ótima saída, pois usa as mesmas letras iniciais quid/quad, associando o prefixo quadr- ao fato do jogo ter 4 bolas e unindo-o ao sufixo -bol;  

Muggle, babbano em italiano, “trouxa” em português. Deriva de mug, gíria inglesa para “trouxa”, contudo, como se trata de um neologismo em inglês, teria sido uma boa ideia criar um neologismo também em português, inventando uma palavra derivada de “trouxa”. No italiano, por exemplo, da palavra babbeo foi criado babbano;

Crookshanks, traduzido como “bichento”. Como é o nome de um gato de pernas tortas (crook=curvado + shank=canela), “bichento” foi uma grande sacada, pois é um regionalismo do Brasil usado pelos nordestinos para definir uma pessoa com as pernas tortas e, ao mesmo tempo, inclui uma referência à palavra “bichano”, termo afetuoso para gatos.

AS CRIATURAS

Minha crítica em especial vai para os nomes de duas criaturas. A insistente e irritante adaptação do nome de criaturas fantásticas que busca nivelar por baixo o público, em vez de incentivar a pesquisa e apresentar os novos leitores de fantasy ao universo das criaturas mitológicas. Um bom exemplo é a adaptação de goblin como duende e de ghoul como vampiro. Um goblin é um ser muito diferente de um duende, assim como um ghoul não é um vampiro. Os goblins geralmente têm a pele verde, aparência feia, são maus ou simplesmente travessos, dotados de pouca inteligência. As outras características dependem do universo ao qual pertencem, os goblins de O Senhor dos Anéis são diferentes dos goblins de Magic: The Gathering ou Dungeos & Dragons, por exemplo, e os goblins de Harry Potter possuem características próprias, sendo inteligentes e hábeis nas finanças, mas isso não os classifica como duendes que, sem entrar em suas origens, são criaturinhas travessas que habitam uma casa e são geralmente dóceis. O ghoul aparece no sétimo livro, quando Ron usa um vampiro como disfarce, mas na verdade a criatura era um ghoul (o erro foi corrigido mais tarde). No mundo fantasy, o ghoul geralmente é uma espécie de demônio que se alimenta de carne humana, com origem na mitologia árabe, e sua tradução estaria mais próxima a carniçal, mas isso seria, mais uma vez, uma descaracterização. Portanto, um ghoul é um ghoul e pronto. E um vampiro, bem, todo mundo sabe o que é um vampiro. A simplificação torna o texto mais fácil para o leitor, mas o empobrece.

 FONTES

https://www.pottermore.com/

7 thoughts on “Harry Potter e suas traduções”

  1. A tradução da Lya Wyler sempre foi paradigmática entre os leitores de Harry Potter de minha família. Compartilhei seu artigo no grupo da família e todos elogiaram bastante seu texto.

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  2. Parabéns pelo bom trabalho! Como um tradutor amador é sempre muito inspirador ler seus textos…
    Eu tenho várias dúvidas de tradução, e se você gosta de conversar sobre, seria um grande prazer! Para exemplificar: como se deu o processo de tradução de Galahad para Galaaz? Qual a chave para traduzir nomes próprios com estilo? Eu traduzi Steampunk com Caos à Vapor, por exemplo. Quais são as ferramentas melhores que o google tradutor? Geralmente eu traduzo por ele e aí estilizo o texto gerado, ou seja, boto ele pra fazer o trabalho duro….

    Aqui vai meu email de contato, se quiser conversar: arthur.rosa66@gmail.com

    Muito obrigado pela postagem!

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  3. Olá Arthur! Obrigada por visitar o meu blog. Fico muito feliz que você tenha curtido meus artigos! Você colocou algumas questões bem interessantes. Sobre a tradução de Galahad para Galaaz, não sei te responder no momento, mas deve ter origem nas regras de adaptação de palavras de origem celta. Contudo, merece uma boa pesquisa. Talvez eu inclua isso num futuro artigo.
    Já a receita para traduzir nomes próprios com estilo não existe, acredito que seja um misto de pesquisa, criatividade e feeling. É preciso conhecer a fundo a origem do termo no idioma de origem, a ideia que o autor quis passar e encontrar algo no próprio idioma que passe a mesma ideia sem perder seu significado, mas que não soe como uma tradução. Eu acredito que “Caos a Vapor” (sem crase, né?) é bem legal, embora já exista a tradução “Tecnavapor”, mas não sei qual é o seu contexto.
    Como ferramenta para auxiliar na tradução, eu recomendo investir em um software de memória de tradução (CAT Tool), tipo MemoQ ou SDL Trados Studio, que armazena suas traduções anteriores para uso em trabalhos futuros. Melhora a qualidade do seu trabalho e ajuda nos próximos.
    Como pesquisa, uso vários sites, tipo o Dicionário Criativo e o Linguee . Fora isso, dicionários, muitos dicionários!!! 🙂 Também recomendo cursos de especialização. Espero ter ajudado. Um grande abraço Arthur e passe sempre por aqui!

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  4. Continuo sem entender porque se traduzem nomes, ainda para mais com associações patetas. A parte que mais concordo é com a final, sobre as criaturas mitológicas, as coisas têm o nome que têm e pronto. Jamais seria capaz de ler um livro em que Slytherin passasse a ser Sonserina.

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  5. Infelizmente na minha opinião você se deixou levar por companheirismo e respeito. Muita preocupação em passar pano pra colega e mentora.

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